Foto: Antônio Cruz/EBC/FotosPúblicas

O fenômeno não é novo, já foi objeto de inúmeras pesquisas e publicações e atualmente é alvo de ações no Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda assim, concluídas quase duas décadas do novo século, a Justiça brasileira não deu nenhuma resposta definitiva e republicana ao chamado “coronelismo eletrônico” (ou quando políticos eleitos mantêm concessões públicas de radiodifusão). São 20 deputados federais, seis senadores e um governador nominalmente vinculado a veículos de comunicação nesta nova legislatura. Além de outros que mantêm ligações familiares e/ou profissionais com grandes redes de comunicação.

No levantamento realizado pelo Intervozes[1], a Bahia aparece como o estado com maior número de eleitos que mantém concessões de rádio e TV: três no total. Os deputados federais reeleitos Félix Mendonça (PDT) e José Rocha (PR), que foram apontados em levantamento semelhante, realizado no início de 2015 – e que deu origem a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 379/2015 – seguem figurando no quadro societário de empresas radiodifusoras, à revelia da lei. Eles são sócios proprietários, dentre outras, da Rádio FM Macaubense e da Rio Alegre Radiodifusão, respectivamente.

Além de manterem concessões em seus nomes, ambos mantêm parentes como sócios em empresas de radiodifusão: a Rádio Litoral Norte FM (Rádio Sociedade da Bahia) está em nome de Maria Helena Almeida Mendonça, mãe de Felix Mendonça; e a Rádio Rio São Francisco Radiodifusão, no município de Bom Jesus da Lapa, está em nome de Noelma Cleia Bastos Azevedo Rocha, esposa de José Rocha. Já Leur Lomanto Jr. (DEM-BA), que antes era deputado estadual e agora representará a Bahia no Congresso, é proprietário da Rádio Jequié FM.

Estados como Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte também diplomaram políticos diretamente ligados a empresas de radiodifusão.

Os deputados federais reeleitos Domingos Neto (PSD-CE), João Marcelo (MDB-MA), Dr. Damião (PDT-PB), Efraim Filho (DEM-PB), Júlio Cesar (PSD-PI), Átila Lira (PSB-PI), Fábio Faria (PSD-RN) e o eleito João Maia (PR-RN), que volta à Câmara após quatro anos, fazem parte de um leque amplo de parlamentares que possuem concessões de rádio e televisão no Brasil. Além desses, há o já bem conhecido caso do deputado federal reeleito Gonzaga Patriota (PSB-PE), dono da Rede Brasil de Comunicação.

O caso de João Maia é no mínimo curioso. Ele declarou ao TSE ser sócio da Estação Jardim FM. No entanto, o CNPJ da empresa não consta do cadastro do Sistema de Acompanhamento de Controle Societário (Siacco) da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o que levanta suspeitas sobre a própria legalidade dessa concessão.

Mas se engana quem acha que o fenômeno do controle dos veículos de comunicação por políticos se mantém circunscrito a estados do Nordeste. Em São Paulo, o deputado federal Luis Felipe Tenuto Rossi, popularmente conhecido como Baleia Rossi, que já é alvo de ação do MPF por fazer parte do quadro societário das emissoras; Rádio Show de Igarapava e Rádio AM Show, manteve-se no cargo, ao ser reeleito em 2018.

Suas duas rádios tiveram as licenças canceladas pela Justiça, em 2016, por entendimento de que poderia haver tráfico de influência e mau uso das concessões para fins políticos. À época, a Justiça de São Paulo também cancelou as concessões de Beto Mansur (MDB-SP), proprietário da Rádio Cultura FM Santos, da Sociedade Rádio Cultura São Vicente e da Empresa de Comunicação PRM. Mansur não conseguiu se reeleger em 2018.

Em 2019, o nome de Baleia Rossi segue aparecendo no quadro societário da Rádio AM Show junto com outros quatro sócios. Aparentemente, todos membros da família do deputado.

A decisão da Justiça de São Paulo é resultado de uma estratégia que se iniciou em 2015, a partir de representações públicas propostas por organizações sociais ao MPF. Vários estados promoveram ações civis públicas para cancelar as concessões de políticos eleitos. Em muitos casos, houve decisão em primeira instância pelo cancelamento das concessões; em outros, houve a saída do político do quadro societário da empresa.

Além de São Paulo, políticos de Minas Gerais como os tucanos Rodrigo de Castro (deputado reeleito) e Aécio Neves, que troca o Senado pela Câmara, possuem seus nomes vinculados ao Siacco. Vale lembrar que Aécio Neves vendeu as cotas de participação na Rádio Arco-Íris à sua irmã Andréa Neves, em setembro de 2016, depois de ter sido acionado pelo MPF de Minas Gerais. Ao que tudo indica os documentos relativos à concessão não foram atualizados junto a Anatel, o que já constitui irregularidade.

Em Goiás, a deputada reeleita Magda Mofatto (PR-GO) aparece como sócia da Rádio e Televisão Di Roma. Na região Sul os deputados Ricardo Barros (PP-PR) e Rubens Bueno (PPS-PR) também aparecem como sócios de empresas de radiodifusão, juntamente com o senador eleito Jorginho Mello (PR-SC).

E por falar em senadores, a bancada da radiodifusão formada também por eles, recebeu uma nova leva de eleitos em 2018 que possui concessões em seu nome.

São eles Arolde de Oliveira (PSD-RJ), que é sócio da Rádio Ritmo e ainda possui outras empresas ligadas ao ramo como a MK Comunicações, e Jorginho Mello, já citado, que é sócio da Rádio Santa Catarina. Eles não são exatamente novatos: Arolde de Oliveira foi deputado federal pelo Rio de Janeiro por nove mandatos consecutivos e Jorginho Mello já figurava entre os políticos citados na ADPF 379/2015 por manter concessões de veículos de radiodifusão.

Eles se juntam a um grupo já bastante conhecido de políticos radiodifusores, como o senador reeleito Jader Barbalho (MDB-PA), dono da RBA Rede Brasil Amazônia de Televisão, e dos senadores Fernando Collor (Pros-AL), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Roberto Rocha (PSB-MA), proprietários, respectivamente, da TV e Rádio Gazeta de Alagoas; da TV e Rádio Jangadeiro, e da Rádio Ribamar. Esses três últimos, embora não tenham sido eleitos em 2018, seguem como representantes de seus estados no Senado.

No Norte do país também vale citar o desempenho eleitoral do clã Barbalho, que além do senador Jader Barbalho, reelegeu a deputada federal Elcione Barbalho (MDB-PA). Filho de Jader e Elcione, Helder Barbalho (MDB) assumiu o governo do Pará, cargo já ocupado pelo patriarca, em 1º de janeiro. Juntos, eles controlam uma extensa rede de comunicação que inclui concessões de rádio e televisão, jornais diários e produtoras de conteúdo.

Lentidão da Justiça

O Artigo 54 da Constituição Federal é evidente ao dizer que deputados e senadores não poderão “firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes”. E é a partir desta regra que organizações da sociedade civil têm atuado para que se faça cumprir a Constituição.

Desde 2011 encontra-se no STF a ADPF 246, que argumenta sobre a inconstitucionalidade da questão e solicita a revogação dos atos do Poder Público relativos às concessões públicas de rádio e TV para políticos eleitos. A ela se somou a ADPF 379, que atualiza os dados dos políticos radiodifusores e incorpora pareceres produzidos no âmbito do Sistema de Justiça nos últimos anos. Ambas as ADPFs estão sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes.

No último mês de dezembro, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, deu novo passo rumo à consolidação da tese da inconstitucionalidade de políticos serem sócios e/ou diretores em empresas de radiodifusão. Em parecer enviado ao STF, no âmbito da ADPF 429/2018, ela afirma que há “[…] potencial risco de que se utilizem dos canais de radiodifusão para defesa de interesses próprios ou de terceiros, em prejuízo da escorreita transmissão de informações, constitui grave afronta à Constituição brasileira”.

A ADPF 429/2018 foi movida, no final de 2017, pela Advocacia Geral da União (AGU), a pedido do então presidente Michel Temer (MDB). A arguição pretendia impedir, por meio de medida cautelar, que novas decisões sobre cancelamento de concessões fossem tomadas em primeira instância (como nos casos de Beto Mansur e Baleia Rossi em São Paulo, já citados). O objetivo do governo era fortalecer, por meio da arguição, a tese da legalidade das concessões, garantindo que políticos de sua base aliada se mantivessem a frente de veículos de comunicação. Uma jogada espúria do governo Temer contra a própria democracia. Essa ADPF encontra-se sob a relatoria da ministra Rosa Weber.

O parecer de Raquel Dodge reforça a tese das organizações sociais e do próprio MPF e pode ser um passo importante para o futuro cumprimento da Constituição. A partir de agora, espera-se que o próprio STF agende a audiência para julgar as arguições e com isso ponha, de uma vez por todas, fim à farra das concessões de rádio e TV em nome de políticos eleitos.

Ligações perigosas

Nem sempre a relação entre um político eleito e uma concessão pública de rádio e televisão é explícita, embora na maioria dos casos seja facilmente desvendada a partir de uma busca simples em órgãos públicos e sistemas de controle societários.

Soraya Santos (PR-RJ), por exemplo, reeleita deputada em 2018, era sócia proprietária em 2015 da Rádio Musical de Cantagalo. Disse em entrevista à época que havia vendido a rádio para uma igreja. No Siacco, no entanto, a rádio consta em nome de Josias Goncalves da Cruz e de Alexandre José dos Santos. Acontece que esse último é o esposo da deputada Soraya Santos e também já exerceu mandato parlamentar, embora atualmente seja apenas empresário. Em outras palavras, tudo em família!

Além de controlar a Rede Nossa Rádio, o deputado reeleito Davi Soares (DEM-SP) é filho do empresário da fé Romildo Ribeiro Soares, mais conhecido por R. R. Soares. Esse, por sua vez, é proprietário da Televisão Cidade Modelo, também conhecida como Rede Internacional de Televisão (RIT). Segundo o levantamento do Intervozes, R. R. Soares possui 13 empresas no ramo da comunicação, entre concessões públicas, produtoras e empresas de TV a cabo.

O senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), que está na metade do mandato no Senado, é membro de uma família proprietária de vários veículos de comunicação, entre os quais, Rádio Marco Zero, TV Amazônia e Rede Amapaense de Radiodifusão. Jayme Campos (DEM-MT), que está de volta ao Senado, já constou da lista de sócios da Rádio Industrial de Várzea Grande. Ele não tem seu nome listado no quadro societário, mas a empresa é mais uma que segue em família, sendo controlada por seu irmão Júlio José de Campos, ex-deputado e ex-governador, e sua sobrinha Consuelo Maria Pinto de Campos.

Entre os governadores, há o caso do paranaense Carlos Roberto Massa Júnior, o Ratinho Júnior. Ele é filho do empresário, apresentador e concessionário de emissoras de rádio e TV Carlos Roberto Massa, o Ratinho, fundador e proprietário do Grupo Massa, que mantém a Rede Massa de Comunicação, afiliada do SBT no Paraná.

Há ainda o caso dos políticos eleitos que são apresentadores de programas de TV – fenômeno que só cresce no Brasil. Ora apresentadores de programas de variedades/celebridades, ora dos chamados programas policialescos, eles têm ocupado cada vez mais espaço e destaque na política.

É possível citar alguns dos deputados federais eleitos em 2018 que são apresentadores, como Bibo Nunes (PSL-RS), que comanda alguns programas em TV aberta e a cabo no Rio Grande do Sul, Amaro Neto (PRB-ES), do Balanço Geral na TV Vitória, afiliada da Record. Também ganhou projeção como apresentador de TV Wilson Lima (PSC), novo governador do Amazonas. Se considerados os cargos regionais como deputados estaduais e vereadores, esse número será ainda maior.

Infelizmente, com exceção da lei eleitoral que proíbe a aparição nos programas durante o período de campanha, não há uma legislação que impeça que políticos apresentem programas de rádio e televisão e, com isso, alavanquem suas carreiras políticas. Se quisermos manter um nível de equilíbrio democrático nas eleições, em um cenário em que a propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV perde importância, precisaremos pensar (e legislar) sobre isso.

[1] O levantamento do Intervozes contou com o trabalho de pesquisa de Alex Pegna Hercog  e Lizely Borges; coordenação e análise de Ana Claudia Mielke.

 

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